Na semana passada eu e meu irmão, Mário, fomos caçar paca, aqui atrás, nessa mata. Encontramos uma toca mexida, ali, perto daquele riacho. Tapamos as saídas e, no buraco mais fuçado, botamos fumaça e essa gaiola. E olha que botamos muita fumaça! Foi quase meia hora nessa história.
A gente já nem achava que tinha paca, nem nada, quando saiu esse bicho esquisito. Dá uma olhada! Será que é o bicho que você está procurando?”, pergunta Dorival. E numa pequena câmera de vídeo amadora, Edson Souza Lima, biólogo mato-grossense de Nova Xavantina, viu sua busca de 10 anos se concretizar, na imagem de um nervoso cachorro-vinagre, dentro de uma pequena gaiola para pegar paca.
Edson e seu irmão, Herson Souza Lima, também biólogo, andaram esse tempo todo pelas fazendas da região, perguntando aos agricultores - na maioria gaúcho, plantadores de soja e milho - se em suas andanças pelos campos abertos viam um animal parecido com um pequeno cachorro, cor marrom terra, orelhas e rabo curtos. Alguns diziam que já tinham visto um animal parecido, sempre ao cair da tarde, correndo pelas terras aradas, assustado e arredio.
Mas nada dos pesquisadores se depararem com o raríssimo cachorro-vinagre, carnívoro extremamente arisco e ameaçado de extinção. Esta encruzilhada de buscas e informações infundadas prolongou-se durante anos a fio, até meados de 2004, quando o vídeo dos irmãos gaúchos deu novo rumo à pesquisa, realizada em parceria com Julio Dalponte, especialista em carnívoros da Universidade do Estado do Mato Grosso e membro da Associação Pró-Carnívoros.
Justamente por dificuldades na pesquisa de campo, pouco se sabe a respeito do cachorro-vinagre, da família dos canídeos, cujo nome científico é Speothos venaticus. Ele difere muito das outras 5 espécies de canídeos brasileiras por apresentar orelhas arredondadas e curtas, assim como as patas e a cauda. Muitas vezes, visto de costas, no lusco-fusco da hora em que costuma sair das tocas para caminhar, pode ser confundido com animais de outras famílias.
Em geral, mede cerca de 70 cm de comprimento e não passa dos 30 cm de altura, podendo pesar até 7 kg. Crê-se não ser um animal abundante. Sua ocorrência vai do Panamá, Colômbia e leste peruano ao Paraguai e Bolívia. Aqui no Brasil, habita florestas e matas ciliares, campos de cerrado e o Pantanal, contudo há registros na região de Itatiaia.
O fato é que se trata de um animal extremamente difícil de ser visto, e isso dificulta qualquer avanço nos estudos. Para os pesquisadores, saber onde o animal anda não é suficiente para definir seus hábitos. É preciso apanhá-lo, colocar um rádio-colar para que possa ser monitorado e, assim, conhecer o território que utiliza, saber se suas atividades são diurnas ou noturnas, como se movimenta para caça, qual a relação da matilha com outros indivíduos da mesma espécie, enfim, é preciso acompanhá-lo diariamente e à distância, para se mapear seu modo de vida.
Além disso, é possível aprender muito através da biometria, que consiste em tirar as medidas dos animais capturados - comprimento do corpo, pernas, patas, unhas e dentes - e da coleta de sangue e urina, que permite decifrar o código genético e eventuais doenças. Com a descoberta de um espécime nos arredores de onde os pesquisadores trabalhavam, teve início a busca à matilha para se tentar capturar alguns indivíduos. Foi preciso correr numerosas tocas, na esperança de localizar o cachorro aprisionado na armadilha de paca ou outra matilha pelas redondezas.
Sabe-se que os cachorros-vinagre vivem em grupos de até 10 indivíduos, caçam cooperativamente e não permanecem muito tempo nas mesmas tocas. Felizmente havia vestígios de que os cachorros estavam por ali. Foi preciso colocar trampas especiais - armadilhas que aprisionam a pata do bicho, mas sem machucar. E dá-lhe tocaia!
A equipe permaneceu durante toda a noite na expectativa. Além de Edson, estavam Rodrigo Jorge, veterinário responsável pela contenção anestésica, coleta de sangue e urina, e Isabel Kirsten Fernandes, aluna de Biologia, responsável pela análise genética.
E, então, no meio da madrugada, um ganido estridente confirmou a captura de um cachorro-vinagre! A contenção do animal foi rápida: era preciso tirá-lo o quanto antes daquela situação incômoda e evitar o estresse. Após a rápida biometria, o animal recebeu um rádio-colar improvisado de raposa-do-campo, mesmo com a bateria prestes a esgotar, para que a oportunidade não se perdesse. Nos dias seguintes, Edson fez um monitoramento contínuo. Constatou que se tratava de um grupo composto do macho capturado, uma fêmea e um filhote com cerca de 6 meses de idade. “O grupo normalmente utiliza tocas abandonadas de tatu. Sai todos os dias ao amanhecer e permanece até as 9:30 da manhã em caçada', resume o pesquisador, com base em suas observações.
'Na literatura está descrito que podem comer desde cutias, pacas até capivaras, mas aqui tenho visto que seu prato predileto é tatu-galinha (Dasypus novemcinctus). Por sinal, o bichinho é bem esperto: entra na toca do tatu, o tira de lá à força, mata, come e depois dorme ali mesmo, no buraco do infeliz!'. Se a caçada teve êxito, conclui o pesquisador, 'eles voltam para a toca e permanecem dormindo até o meio-dia, quando saem lentamente, como toda cautela, para urinar e defecar e uma rápida caminhada ao redor da toca. Voltam a dormir até o final da tarde, e se porventura sobrou algo da caçada matinal, saem para saborear mais um pouco de carne.'
Logo o rádio-colar improvisado exigiu uma recaptura. Foi quando a bióloga norte americana Karen DeMatteo entrou para a equipe como colaboradora, trazendo sua experiência com essa espécie em cativeiro. Ela desenhou e aperfeiçoou um colar específico para o cachorro-vinagre, que possui uma anatomia totalmente diferente dos outros canídeos. A dificuldade, vulgarmente falando, é que ele parece não ter pescoço: seu corpo se 'une' direto à cabeça.
Alguns dias antes da minha chegada à Nova Xavantina, Edson capturou a fêmea e colocou o rádio-colar adequado. Achamos que a recaptura do macho seria mais fácil, já que podíamos monitorar a movimentação dos animais com o rádio-receptor. Ledo engano.
No segundo dia de procura, conseguimos um sinal às 10 da manhã. Caminhamos cerca de 2 horas pelo cerrado e matas ciliares, lugares habitados pelo vinagre, e muitas vezes as árvores altas, as grotas e os vales de drenagem interrompiam o sinal. Até que num pequeno barranco de um córrego seco, Edson pegou o sinal de rádio bem forte. Pela forma como o 'bip' soa, é possível saber se o animal está em movimento ou repouso. Encontramos o grupo numa toca abandonada de tatu-canastra (Priodontes maximus), aparentemente dormindo.
Ficamos, testando nossa própria resistência, até final da tarde, quando Edson pôde ver o macho chegar bem perto do laço, cheirar, recuar, avançar, recuar e finalmente sentar, esperando. Neste meio tempo, Karen aproveitou para testar a reação dos animais com as gravações de vocalizações de outros grupos de vinagres cativos.
Entre os felinos, imitar o som de um macho no território de outro é literalmente 'comprar briga'. O animal dominante daquele território responde com todo o fervor, e rapidamente vem ver quem está 'invadindo' seu espaço. No caso dos cachorros-vinagre, a resposta foi uma movimentação do macho, agitado, dentro da toca, captada pelo 'bip' do rádio-receptor. Mas ele não chegou a sair para ver o que se passava.
O processo se prolongou até as 3h30min da madrugada, quando despertamos de um sono leve e incômodo como só a permanência na mata, sem barracas, cobertas ou qualquer outra fonte de calor pode causar. Um ganido agoniado e repetitivo e Edson rapidamente imobilizou o cachorro-vinagre macho, retirando-o das trampas, enquanto Rodrigo preparava o anestésico.
Após a sedação, que dura em torno de 50 minutos, iniciou-se a biometria. Enquanto retirava sangue e monitorava os batimentos cardíacos, Rodrigo explicou que uma de suas intenções é pesquisar a possível transmissão de doenças de cães domésticos para os vinagres, como a cinomose ou parvovirose, capazes de causar a morte de toda a matilha. Até há pouco tempo acreditava-se que ocorria apenas a transmissão contrária, ou seja, dos animais silvestres para os domésticos. Contudo, a expansão agrícola sobre áreas nativas, como é o caso das lavouras mecanizadas de soja sobre o cerrado, nesta região do Mato Grosso, diminui drasticamente os territórios disponíveis para os animais selvagens.
O contato cada vez maior com áreas urbanas os expõe a situações perigosas, como doença, caça e atropelamentos. Outra porção do sangue retirado será usada pela Isabel num estudo de Citogenética. Através de um complicado processo de mistura do sangue em meios de cultura, é possível acompanhar a divisão celular até o momento propício da metáfase, quando se preparam lâminas de microscópio, para então fazer o cariótipo da espécie, o que corresponde a 'tirar' sua identidade genética.
Edson mostra as protuberantes unhas das patas dianteiras, certamente usadas na escavação das tocas, e o maxilar extremamente forte, com uma arcada dentária propícia para caçadas, rápidas e certeiras, de animais até maiores do que ele. Terminadas todas as medições, o vinagre foi mantido aquecido, com a ajuda de uma luz, até se recuperar do anestésico e retomar os movimentos normais, dentro de uma pequena gaiola.
Nos dias que se seguiram, acompanhei Edson no paciente processo de telemetria. Trata-se de uma averiguação indireta, pois foram poucas às vezes em que se pôde visualizar qualquer atividade externa. O fato é que com essa pesquisa - atualmente financiada pela Sociedade Zoológica de Chicago - inicia-se uma fase de ampliação do conhecimento da espécie em vida livre.
A cada dia novas informações preencherão as pequenas cadernetas destes incansáveis pesquisadores, que em meio a zunidos de mosquitos ou abelhas e ataques incessantes de carrapatos, pacientemente esperam por um sinal. Ou um 'bip'.