Pequenos, silenciosos, independentes e praticamente autolimpantes, os gatos se encaixam cada vez mais na vida das grandes cidades: exigem pouco tempo e pouco espaço — na prática, requerem uma fração mínima daquilo que, de fato, temos quase nada.
Talvez essa seja a principal explicação para a população felina chegar hoje a quase 24 milhões de representantes nas casas brasileiras, com a expectativa de que ultrapasse o número de cães entre 2022 e 2023, o que já aconteceu no Canadá, nos Estados Unidos e em grande parte da Europa.
Se as estatísticas deixam claro que eles nos conquistaram, nós ainda estamos bem longe de ganhar a total confiança dessa espécie.
Os mais de 9.500 anos de convivência (sim, há indícios de que essa história começou bem antes dos 4.000 anos nos quais costuma ser estimada) não tiraram do gato o traço mais característico de um indivíduo que ora é presa, ora é um caçador solitário: a discrição.
Se fossem humanos sofrendo por amor, os cães formariam duplas sertanejas e encheriam nossos ouvidos cantando sofrência. Cães sofrem para fora e, em geral, reclamam sem fazer rodeios.
Já os gatos... ah, os gatos... eles seriam aqueles boêmios solitários, que seguem de bar em bar, pedem uma em cada balcão e adormecem sozinhos, de madrugada, em um canto qualquer, sem dizer nada.
A vida livre ensinou aos gatos que demonstrações de fragilidade não ajudam na luta pela sobrevivência. E milhares de anos depois eles ainda não esqueceram essa lição.
É nesse contexto que diversos grupos de pesquisa se dedicam a desenvolver critérios que nos ajudem a saber se os gatos estão sentindo dor e em que intensidade isso acontece. E os brasileiros se destacam nessa área.
Até agora, duas dessas escalas de dor já haviam rompido os limites dos laboratórios e tido o uso testado e aprovado em pacientes reais: a Escala Multidimensional de Dor Composta da UNESP de Botucatu e a Escala de Medição da Dor Composta de Glasgow, que quantificam o desconforto avaliando comportamento, movimentação, vocalização, interação do paciente com o ambiente e com as pessoas e até parâmetros físicos dos animais (caso da desenvolvida na Unesp). São avaliações completas e precisas, mas que impõem algum grau dificuldade para serem utilizadas por um leigo, fora do ambiente hospitalar.
No último dia 13, no entanto, uma terceira escala foi publicada no Scientific Reports, a revista online e de acesso livre mantida pelos editores da revista Nature.
O pulo do gato (com o perdão do trocadilho infame) é que o novo conjunto de critérios para que se defina se o animal está ou não com dor se baseia apenas na observação das expressões faciais dos gatos, com total possibilidade de ser utilizado pelos responsáveis pelos animais (embora esse uso ainda não tenha sido testado).
De fato, os pesquisadores, liderados pelo brasileiro Paulo Steagall, que formou-se pela Unesp e hoje é professor de anestesiologia na Universidade de Montreal (Canadá), testaram se a já conhecida “grimace scale” (ou escala de caretas, em português) pode ser aplicada aos gatos.
A “grimace” é um método de aferição de intensidade de dor aplicado a animais não-humanos, a exemplo do que se faz com humanos que ainda não falam, e já foi validada em algumas outras espécies, como nas cobaias de laboratório.
O grupo de Steagall filmou 31 gatos com dor, internados por clientes, e 20 gatos sem dor, que foram usados como controle do estudo. Os registros foram feitos enquanto os animais estavam nas gaiolas de internação, sem nenhuma interferência externa.
Depois disso, dois observadores, que trabalharam sem contato entre si e que não sabiam quais eram os gatos com ou sem dor, atribuíram pontos a cinco características faciais dos animas (na “grimace” essas características são chamadas de unidades de ação facial), conforme tabela abaixo:
As características listadas na coluna das que não pontuam sugerem ausência de dor. As que levam 1 ponto, dor moderada ou incerta. As que recebem 2, dor evidente. Se, ao final, a soma ficar em 4 ou mais pontos, o gato está com dor e precisa de analgésicos e cuidados. No pior cenário, ele somará 10 pontos.
No estudo, os observadores foram capazes de pontuar as imagens de forma a separar corretamente os gatos que sentiam dor daqueles que não sentiam, o que serviu para validar o uso clínico da escala.
Agora, o grupo da Universidade de Montreal vai testar se a técnica mantém o nível de confiança quando os observadores não são médicos-veterinários.
Portanto, caro gateiro, o aval científico ainda não veio, mas nada o impede de ficar de olho no bichano e procurar ajuda se ele estiver fazendo muita careta.
PS: Por favor, nada de automedicação. Gatos não podem tomar muitos dos remédios que servem para cães e para humanos.