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A penicilina só fez efeito em humanos em uma quantidade 3.000 vezes maior que a testada em camundongos. Mas foi graças aos testes que o antibiótico teve sua eficiência comprovada e pôde salvar centenas de milhões de vidas
Desde sábado, o site de VEJA publicou uma série de entrevistas com especialistas que discutiram os prós e os contras do uso de animais em pesquisas científicas.Ray Greek tenta provar cientificamente que usar animais não vale a pena; Michael Conn, pesquisador e autor do livroThe Animal Reserch War; e Marcelo Morales (em uma entrevista feita na 25ª reunião anual da FeSBE e publicada anteriormente pelo site), presidente da comissão de ética com animais da UFRJ, argumentam que sem a pesquisa com animais a medicina não teria avançado. Com esta matéria, encerramos a série.
Talvez esse debate não faça sentido daqui a cem anos — ou até menos. O uso de animais para esse tipo de pesquisa hoje é uma necessidade que pode desaparecer com a evolução de modelos que simulam os efeitos dos remédios em computadores e em tecidos humanos cultivados em laboratório. Mas, por enquanto, todos os remédios que estão nas prateleiras das farmácias foram testados em animais. Se vivemos mais e melhor, devemos muito às pesquisas com animais.
O biólogo americano Alexander Fleming, descobridor da penicilina, em seu laboratório
Talvez um dos casos mais emblemáticos seja a descoberta dos antibióticos, usado como exemplo tanto por defensores e detratores do modelo de pesquisa com animais. Em 1928, Alexander Fleming notou que a bactéria staphylococcus não proliferava em uma cultura contaminada com o fungoPenicillium notatum. A partir daí, foram 12 anos até que houvesse penicilina suficiente para testes científicos. Em 1940, dois cientistas ingleses infectaram oito camundongos com uma dose letal de bactéria e, uma hora depois, injetaram penicilina em quatro deles. Os que não foram tratados morreram. Mas a quantidade de penicilina necessária para tratar humanos era 3.000 vezes maior do que em camundongos.
Para os detratores, a diferença de escala revela a falta de precisão do modelo animal. Já os cientistas argumentam que, sem esses testes iniciais, a penicilina não teria sido mais estudada. O método revolucionou o tratamento de infecções bacterianas que, até então, causavam centenas de milhões de mortes.
Outros avanços semelhantes, atribuídos à experimentação animal pelos cientistas que a defendem, são a transfusão de sangue, a cura da tuberculose, o tratamento da asma, o transplante de rim, o tratamento do câncer de mama - e a produção de todos os medicamentos atualmente comercializados.
Certas pesquisas beneficiam tanto humanos quanto os próprios animais. Na USP, a geneticista Mayana Zatz conduz atualmente uma pesquisa com células tronco em busca da cura da distrofia muscular de Duchenne (DMD). Essa doença, que só atinge meninos e causa a degeneração dos músculos, pode fazer com que uma criança perca a capacidade de andar aos 10 anos — a partir daí a situação piora. Há alguns anos, um pesquisador americano descobriu que cães da raça golden retriever também desenvolvem a distrofia muscular. No intuito de descobrir um tratamento para seres humanos, a equipe liderada por Mayana busca a cura da doença nos cães. Até então, as pesquisas, com células-tronco, eram desenvolvidas em camundongos. “Se conseguirmos tratar esses cães, estaremos a um passo do tratamento em humanos”, afirmou a geneticista. Depois da pesquisa, os cães serão treinados para ajudar cadeirantes.
Tropeços — Em 1957, um novo remédio chamado Talidomida chegou ao mercado. A substância, sedativa e anti-inflamatória, havia sido exaustivamente testada em cobaias. Os roedores, que metabolizavam a droga de forma diferente de humanos, não acusaram problemas. No entanto, as mulheres grávidas, que tiveram a droga prescrita para enjoo matinal, tiveram bebês deformados, com uma condição chamada focomielia, que impede a formação de braços e pernas. Para quem é contra o uso de animais em pesquisas científicas, esse caso mostra que os efeitos observados nos bichos não servem para prever o que acontecerá em seres humanos. Quem defende o uso argumenta que a lição foi aprendida e com o rigor científico de hoje isso não teria acontecido — o teste seria feito em roedoras gestantes e o efeito seria detectado a tempo.
De acordo com um relatório do Conselho das Organizações Internacionais de Ciências Médicas, de 2005, mais de 130 produtos farmacêuticos foram retirados do mercado mundial nos últimos 40 anos por motivo de segurança. Um terço nos dois primeiros anos de comercialização e 50% em até cinco anos. Os principais motivos apontados pelo órgão ligado à Organização Mundial de Saúde são as reações adversas causadas pelos medicamentos.
No Brasil, desde fevereiro de 2010 as empresas são obrigadas a monitorar os medicamentos que colocam no mercado nacional. Ao mesmo tempo, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), também fiscaliza os remédios usados por profissionais de saúde, farmácias, hospitais e organismos internacionais. Nos últimos seis anos, pelo menos sete classes de remédios foram retirados do mercado por causar reações adversas nos pacientes. Entre eles, o Vioxx, em 2004, por causa de risco cardiovascular, e o Tacrolimos e a Closapina, em 2009, ambos por falta de eficácia.
Alternativas — Com a recente decisão da União Europeia de restringir o uso de animais em pesquisas médicas e proibir de vez a utilização de grandes símios em experimentos científicos, as alternativas científicas ao teste em animais entraram em evidência.
O projeto Genoma, encarregado de sequenciar todo o material genético humano, completa 10 anos em 2010. Os resultados alcançados por ele permitem que modelos computacionais e matemáticos ganhem força no estudo de novas moléculas criadas pela indústria farmacêutica - o que antes só era possível com o teste em animais. Esses modelos, contudo, não são totalmente seguros e precisam de validação ulterior para que venham a substituir as práticas já consagradas.
Cão da raça Golden Retriever
Pele artificial — Além de computadores, os cientistas estão apostando em modelos in vitro com tecidos de seres humanos e cultura de células. Em 2006, pesquisadores da Unicamp desenvolveram uma pele humana artificial. Paralelamente, outros centros brasileiros desenvolveram pesquisas similares. Os biólogos Luísa Villa e Enrique Boccardo, do Instituto Ludwig de Pesquisa Sobre Câncer, recriam a pele humana e a utilizam para estudos do HPV (vírus do papiloma humano) no câncer cervical.
Mesmo na controvertida área dos cosméticos, combatida pelos defensores dos animais, está ocorrendo avanços. Na Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP, a equipe formada pelas biólogas Silvia Berlanga, Carla Brohem, Laura Cardeal e liderada por Silvya Stuchi Maria-Engler, desenvolveu um tipo diferenciado de pele humana artificial que utiliza fragmentos de pele natural doada em cirurgias plásticas, capaz de oferecer condições para reproduzir o melanoma, um tipo de câncer de pele extremamente letal. Com isso, é possível realizar o teste de novos medicamentos e cosméticos reduzindo a participação dos animais na pesquisa.
O passo seguinte é incluir elementos do sistema imunológico e reproduzir, in vitro, o envelhecimento da pele artificial. A longo prazo, outras aplicações serão possíveis, como cirurgias reparativas para pacientes que sofreram queimaduras ou cirurgias estéticas com a produção de “peles customizadas”, geradas com grau de pigmentação semelhante ao do paciente.
Seja qual for o modelo, a pesquisa científica caminha para um futuro com um uso cada vez menor de animais. Mas, no presente, eles ainda são necessários para continuar a salvar vidas — humanas e não-humanas.