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RIO - Ele nunca foi comum, é verdade, mas a crescente ocupação humana em seu habitat, do sul da América Central até o sul da América do Sul, deixou o cachorro-do-mato-vinagre, ou só cachorro-vinagre (Speothos venaticus), ameaçado. Agora, porém, estudo do Instituto Pró-Carnívoros, em parceria com o Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Carnívoros (Cenap), do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), com apoio da Fundação O Boticário, revela pela primeira vez os hábitos destes animais na natureza, abrindo caminho para a sua preservação.
-- A espécie já é rara naturalmente - conta o biólogo Edson Lima, coordenador dos trabalhos de campo do projeto no Mato Grosso. - Por isso, poucos estudos foram feitos sobre ela. Grande parte dos dados que tínhamos foram coletados na observação desses animais em cativeiro.
Considerado o mais social dos canídeos brasileiros, o cachorro-vinagre vive em matilhas de cerca de dez indivíduos, que atuam cooperativamente para a sobrevivência mútua. Juntos, eles caçam sua presa preferida, o tatu-galinha (Dasypus novemcinctus), e consomem o resultado de seus esforços sem brigas ou hierarquia, apesar de os grupos contarem sempre com um macho e uma fêmea dominantes, destaca Edson Lima:
- Desde muito jovens, com apenas três meses de idade, os filhotes já participam da caça e cavam tocas, enquanto os jovens adultos ajudam no transporte dos mais novos com a boca e toda a família auxilia nos cuidados com as crias.
ESPÉCIE
Segundo o biólogo, os animais costumam acordar muito cedo, por volta de 5h, e seguir o cheiro deixado pelo tatu no retorno à sua toca de madrugada. Começa então um trabalho árduo, com três a quatro indivíduos se revezando dentro da toca do tatu para arrastá-lo para fora.
- Chegamos a registrar cinco horas de esforço seguido para que o tatu fosse pego, mas raramente a presa escapa - relata Lima. - Neste momento, surge mais uma das características do forte comportamento social destes animais. Mesmo diante de pouca carne para tantos cachorros, o que poderia gerar uma grande confusão, não há conflitos e todos se alimentam ao mesmo tempo.
Entre as descobertas que chamaram a atenção está o fato de as matilhas de cachorros-vinagre precisarem de áreas muito grandes para sobreviverem. Uma delas utilizou até 720 km², dimensão muito superior à média de outros predadores sul-americanos, como o lobo-guará, que usa entre 65 e 80 km², ou ainda da onça-pintada, maior carnívoro da América do Sul, que precisa de 50 a 150 km². Segundo Lima, a grande extensão é reflexo de vários fatores, alguns naturais e outros provocados pelo homem.
- O tatu-galinha também é uma espécie bastante seletiva em relação ao seu habitat - explica. - Se por um lado isso facilita o trabalho dos cachorros, por outro traz uma pressão ecológica muito forte sobre as populações de presas. Acreditamos que usar uma área muito grande é uma estratégia das matilhas de não pressionar muito essas populações e mantê-las estáveis. Os cachorros-vinagre são muito nômades e ficam apenas cerca de dois meses em cada sítio de caça para não dizimar sua presa principal.
Já a devastação pelo homem do habitat das duas espécies força as matilhas a viajarem cada vez mais para acharem suas presas. Na região de Nova Xavantina, leste do Mato Grosso, onde o estudo foi conduzido, a maior parte da vegetação natural de Cerrado foi removida para o cultivo de lavouras e pastagens, sobrando menos de 30% de área preservada. Assim, quase a totalidade das localizações dos animais (95%) foi obtida em regiões conservadas, quando eles estavam em repouso, caçando ou comendo, enquanto na maioria das localizações em área cultivada eles se moviam rapidamente.
- Em virtude da fragmentação de seu habitat, as matilhas têm que caminhar muito para variarem seus sítios de caça e encontrarem as presas - conta Lima. - Se a pressão do desmatamento continuar, a tendência é a espécie desaparecer da região e entrar em extinção, como já aconteceu em diversas outras áreas de ocorrência no resto do país.
O desmatamento, porém, não é a única ameaça à sobrevivência dos cachorros-vinagre. De acordo com Lima, a carne de tatu-galinha também é muito apreciada por alguns moradores da região.
- Eles sabem que a caça é proibida, mas observamos que ainda vai levar muito tempo para isso parar - lamenta. - O problema é que os cachorros-vinagre mantêm uma relação de equilíbrio instável com as populações de tatus-galinha e a ação humana pode levar rapidamente a um colapso total desse sistema.
Além disso, junto com o homem vieram animais domésticos, em especial cães, que atacam os cachorros-vinagre ou então transmitem para as matilhas diversas doenças que as dizimam completamente, entre elas sarna e raiva.
- Em todos os grupos com os quais trabalhamos, cerca de 50% das perdas foram devido à predação por cachorros domésticos - diz o biólogo. - E as doenças são outro grande problema. Já sabemos que o cachorro-vinagre é bastante sensível à sarna sarcóptica.
Em pelo menos dois casos, no entanto, Lima tem certeza que os animais foram mortos por pessoas:
- Provavelmente tinham medo que eles atacassem as criações de galinhas. Mas o cachorro-vinagre é um animal muito arisco e arredio, que foge rapidamente diante de qualquer perturbação. Duvido muito que um deles chegaria perto o suficiente para atacar um galinheiro.
No estudo, iniciado em 2004, os pesquisadores conseguiram acompanhar três matilhas que tiveram destinos variados, conta Lima. O primeiro grupo, com um casal e um filhote, logo foi acrescido por mais quatro crias. Monitorados durante 13 meses, todos acabaram morrendo, vítimas de predação ou doenças. Em 2007, os pesquisadores capturaram um casal, que foi observado por aproximadamente dois meses e meio:
- Eles já estavam totalmente infestados por sarna e foram tratados. O macho alfa, no entanto, não resistiu e morreu. A fêmea sobreviveu, mas também acabou morta por um cachorro doméstico.
Já em maio de 2008, uma terceira matilha, de dez indivíduos, foi capturada em Água Boa (MT). Esse grupo, monitorado até dezembro de 2009, foi responsável pela maior parte dos dados sobre a espécie colhidos pelos pesquisadores. Formado pelo casal dominante, três jovens adultos e cinco filhotes, todos receberam radiotransmissores para serem rastreados.
- Como a espécie não cai em armadilhas convencionais, tivemos que lançar mão de métodos mais ousados para conseguir capturá-los - relata. - Neste caso, graças a folhetos distribuídos na região, pudemos localizar a matilha com o auxílio dos moradores.
Segundo Lima, o acompanhamento do grupo permitiu observar detalhes nunca antes vistos da vida desses animais. A fêmea alfa, por exemplo, é a única que reproduz e controla o cio das filhas.
- Acreditamos que ela tem algum mecanismo de inibição que não permite que as fêmeas que permanecem no grupo se reproduzam.
Já entre os machos, os pesquisadores observaram que geralmente cabe ao dominante farejar a presa e guiar o grupo. Nesta matilha, porém, era o filhote mais velho que estava mais ativo no trabalho de retirar o tatu-galinha da toca.
- Não sabemos se isso se deu por sua juventude ou se serviu para adquirir capacidade de predação para assumir a responsabilidade de criar a própria família - diz Lima. - O fato é que, dos sete adultos do grupo, dois se dispersaram, o filhote mais ativo e uma fêmea, que devem ter formado uma nova matilha.